“Onde o ausente é comida, as saudades são fome”, escreve Antonio Viera no Índice das coisas mais notáveis. Parece dizer bem o “imperador da língua portuguesa” (como o nomeou Fernando Pessoa), essa mesma língua que se orgulha de ter uma única palavra para designar um sentimento cuja ambiguidade parece intraduzível aos outros idiomas – e, portanto, às outras culturas. Se são fome e plural, como quer o pregador jesuíta, as saudades são carência, e múltiplas. Carência, falta, ausência do que fui ou do que se foi, do que esteve e passou, do que se ama mas não está, do que se amou e nunca mais estará, do que se ama e jamais esteve. Assim, pois, como não há memória sem tempo, não há saudade sem lembrança. Por isso a pintura e sobretudo a fotografia se revelam, ao mesmo tempo, como repositórios e provocadores da atualização dessa dor – não necessariamente desesperançada mas sempre melancólica – causada pela imagem eternizada de um momento ou de uma paisagem, de uma pessoa ou de outro sentimento, de uma cena ou de outros tempos, radicalmente outros e singulares, únicos, irreproduzíveis. Centrando-se na fotografia, num percurso que começa pela etimologia da palavra e sua apropriação pela poesia medieval, passando pela pintura, Samuel de Jesus empreende exaustivo estudo sobre as relações entre aquela invenção relativamente recente, hoje tão universal e popularizada, e esse afeto no âmbito da cultura luso-brasileira. Não há exagero em afirmar que este é o mais complexo e monumental estudo sobre esse sentimento que nos é tão caro, com a vantagem de que o presente ensaio é fruto de um olhar estrangeiro, portanto menos sujeito à paixão com que a saudade foi contemplada pela historiografia, desde o século XIX, inclusive por correntes ideológicas ultraconservadoras dos dois lados do Atlântico. Com impressionante erudição, Samuel de Jesus repõe o tema da saudade em sofisticada perspectiva, inteiramente nova e inovadora, inaugurando outro momento na biografia desse sentimento inseparável de qualquer biografia.Joaci Pereira FurtadoProfessor do Instituto de Arte e Comunicação Social da Universidade Federal Fluminense
Sobre o autor(a)
Scheibe, Fernando
Fernando Scheibe nasceu em Florianópolis, Santa Catarina, em 1973. É doutor em Teoria da Literatura pela Universidade Federal de Santa Catarina e professor de língua francesa e literaturas de expressão francesa na Universidade Federal do Amazonas, onde desenvolve pesquisas na intersecção entre tradução, teorias críticas e filosofia política. Como tradutor, verteu, entre outros, os seguintes livros: Divagações (2010), de Stéphane Mallarmé; O erotismo (2013) e Sobre Nietzsche (2017), de Georges Bataille; O belo perigo e A grande estrangeira (2016), de Michel Foucault; e A filosofia crítica de Kant (2018), de Gilles Deleuze. É também revisor e editor da Cultura e Barbárie Editora, com sede em Santa Catarina. |